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Uma viagem diferente:  15 dias vivendo numa fazenda confiscada da máfia na Itália

Gabi Brunelli
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Toda vez que visito um país, sempre tento conversar com as pessoas do lugar, conhecer locais menos turísticos, tentar entender um pouco mais da realidade de cada um. Mas nem sempre isso é possível. E sempre tive vontade de ter uma experiência de viagem diferente. Um voluntariado, ou algo do tipo.

Há alguns anos eu e minha filha participamos do CISV. Para entender melhor o que esta organização internacional faz, dá uma lida no post Seu filho também vai para o mundo! Você conhece o CISV?. Focado na educação para a paz e fundamentado em quatro pilares: diversidade, direitos humanos, desenvolvimento sustentável e conflito e resolução, o CISV tem uma série de programas para crianças desde os 11 anos até adultos como eu.

E foi assim que conheci o International People’s Project, que é o um programa do CISV para pessoas a partir de 19 anos (sem limite máximo). Neste programa, um grupo de participantes de vários países passa até 23 dias em uma comunidade, trabalhando junto com organizações locais em projetos já existentes ou em um projeto novo e pontual desenvolvido especialmente para esta parceria entre o CISV e a organização.

Um IPP pode ser feito sobre qualquer tema que englobe os quatro pilares do CISV, como preservação da natureza e reciclagem de lixo (sustentabilidade), apoio a imigrantes (diferenças culturais), ou combate à corrupção (direitos humanos). E os participantes normalmente ficam hospedados no local onde o programa é desenvolvido.

Em 2019, haviam cinco IPPs disponíveis:

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Logo de cara, me chamou a atenção o programa “Paeceful Fights Against All Mafias”, em Torino, na Itália, onde os participantes trabalhariam em uma fazenda que foi confiscada de uma família mafiosa e entregue a uma cooperativa comunitária, restaurando-a para uso público.

A organização parceira seria a Libera (“Associações, nomes e números contra máfias), que é uma rede de organizações comprometidas em educar e incentivar a sociedade civil na luta contra o crime organizado e na promoção da lei e da justiça.

A ideia do camp era aprender como funciona a moderna máfia do colarinho branco e seu lugar em uma rede global que está longe do antigo estereótipo do “padrino” italiano, e como hoje, em uma sociedade desigual, com interesses no tráfico de seres humanos e drogas, a máfia distorce o mundo econômico, rouba recursos da comunidade e corrompe a democracia.

Me inscrevi através do Cisv São Paulo e tive a honra de ser uma das representantes do Brasil neste IPP. Durante 15 dias, de 04 a 18 de agosto, junto com mais 14 pessoas de outros 9 países, vivi uma experiência inesquecível e transformadora.

A “Cascina Caccia”

Cascina pode ser traduzido como uma propriedade rural com uma casa de habitação nela. São as nossas fazendas, mas nem sempre com uma grande extensão. A Cascina Caccia – local onde ficamos no IPP, nem sempre teve esse nome. O local foi dedicado à memória do procurador-geral de Turim Burno Caccia, morto em uma emboscada da máfia em 26 de junho de 1983 e de sua esposa Carla.

bruno e carla

Bruno e Carla Caccia

 

Originalmente, a propriedade pertencia à família ‘Ndranghetista (uma das quatro principais organizações mafiosas da Itália) de Domenico Belfiore, chefe de uma associação que sozinha controlava e gerenciava o narcotráfico, roubos, sequestros, e apostas por toda a região metropolitana de Torino. Domenico foi condenado à prisão perpétua em 1993 como mandante do assassinato de Bruno Caccia.

Com o patriarca preso, o filho Salvatore passou comandar os negócios da família. Sasá, como era conhecido, foi preso por tráfico de drogas em 1994 e condenado com o agravante de associação à máfia. Após a prisão do filho, em 1996 foi decretado o confisco dos bens da família Belfiore – entre eles a Cascina. Mas somente em 2007 os mafiosos deixaram a propriedade, não sem antes destruir tudo que podiam.

No Si Entra

Porta que permanece na fazenda desde o tempo em que a família Belfiore vivia lá. Com a frase: no si entra.

 

Só então pode ser feita a reutilização social do bem prevista na lei. Desde 2008 a Cascina está sob gestão da Associação Acmos, que administra o local aberto ao público e voltado a atividades sócio-educacionais.

A casa principal tem três andares. No térreo há uma sala onde tínhamos diversas atividades e uma cozinha industrial, além de outros cômodos. No primeiro andar ficam os quartos para grupos que passam temporadas no local (como nós), uma biblioteca e os banheiros. No terceiro andar ficam os quartos do pessoal que mora e administra o local. Em outra construção, na frente da casa principal, fica o antigo celeiro, que hoje serve para eventos e também para a produção de mel.

No entorno das duas construções há ainda um depósito menor, e as plantações de frutas, especialmente avelãs, que também são usadas para a produção orgânica vendida pela Cascina.

A chegada

A chegada é sempre cheia de expectativas. Como seriam os participantes? De onde viriam? E o staff, seria legal, estaria bem organizado? De minha parte, a maior apreensão era que fossem todos muito jovens e apenas eu com mais de 40 anos. 

Fui uma das primeiras a chegar no local. E conforme o dia foi passando e fui descobrindo o lugar o lugar, ia conhecendo aqueles que seriam minha “família” pelos próximos 15 dias. Da jovem Hanah da Bielorrússia ao animado casal grego Labis e Helena, passando pela minha “irmã” italiana Giovana, todos traziam aquele sorriso mesclado de ansiedade e alegria por estar ali.

E no fim do dia, depois de algumas brincadeiras para “memorizarmos nossos nomes”, ali estávamos todos: Brasil, Itália, Portugal, Espanha, Chile, Grécia, Luxemburgo, Dinamarca, República Checa e Bielorrússia.  Alívio para mim. Parecia uma mescla de idades e culturas interessantíssima!

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O dia a dia no IPP

Uma das principais características das atividades do CISV é o “aprender fazendo”.  A ideia é aprender pela experiência e, não apenas pela teoria. Em vez de somente aulas ou palestras, usamos atividades lúdicas, com análises e reflexões no final. Na minha opinião, isso ajuda a manter a atenção na atividade, e também um comprometimento com os temas e os desafios propostos.

Outra coisa importante é que todo o grupo, e não apenas o staff (que organiza o camp antes do seu início) é responsável pelo andamento das atividades e do projeto. Então todos têm o dever de se comprometer e, inclusive, compartilhar se algo não está andando conforme suas expectativas.

E o IPP não foi diferente.

Logo nos primeiros dias, em conjunto definimos as “regras” de convivência do camp. Também fomos divididos em quatro grupos que diariamente seriam responsáveis pelas diferentes atividades de limpeza do lugar.

Também decidimos em conjunto com o staff o cronograma de atividades. Estas se dividiam basicamente em três tipos:

1. As organizadas pela Libera: onde nos ensinavam muito sobre a história das diferentes máfias italianas, a luta contra estes grupos, e as centenas de vítimas e suas histórias.

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Um dos dias mais especiais, foi a visita de uma mãe que perdeu sua filha assassinada pela máfia. Ela nos contou toda a história da jovem Marcela, que muito cedo acabou se viciando em drogas e se tornando uma “funcionária” da máfia. Quando ela decidiu contar tudo à polícia, foi brutamente assassinada, e seu caso até hoje não foi totalmente elucidado pela justiça.

Também pudemos assistir vários filmes que contam histórias reais sobre personagens que fizeram parte da luta contra estas organizações. Realmente muito bom!

2. Trabalho: quando trabalhávamos fisicamente na manutenção e nas atividades da fazenda, como na colheita de avelãs, na produção de mel, ou nos eventos promovidos pela Cascina.

Como a Cascina é um bem de uso público, e consequentemente carece de recursos, é muito importante o trabalho de voluntários como nós. Então pequenas coisas que fizemos, como lixar e passar verniz nas mesas que são usadas nos eventos externos, ou colher centenas de avelãs (que vão se tornar produtos como chocolates vendidos no local) são de exterma importância para eles.

3. Delegation Activity: nestes espaços, cada delegação apresentou uma atividade sobre o tema (combate à corrupção e crime organizado) sob o ponto de vista da realidade no seu país.

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Estes momentos foram realmente incríveis. Conhecer a realidade de cada país, suas dificuldades, sua cultura, e exemplos que podemos usar no nosso dia a dia é realmente enriquecedor.

Durante estas atividades tivemos debates incríveis sobre imigração, sobre honestidade, sobre colonialismo, sobre comunismo e muito mais! Como eu sempre digo: se quiser aprender sobre um tema, fale com alguém que viveu algo parecido. E escute, escute muito. Todo mundo tem muito a ensinar.

Serei eternamente grata a tudo que aprendi com meus colegas de IPP.

Além destas atividades, tivemos dias de visita a Torino e a uma região turística próxima à Cascina.

De resto, durante dia e noite, convivíamos, discutíamos o tema e as realidades de nossos países, e celebrávamos a incrível oportunidade que estávamos vivendo. Tivemos a sorte enorme de termos um grupo muito participativo e sem nenhum conflito (que seria normal acontecer).

Um dos pontos altos foi o almoço das delegações, quando todos cozinhamos pratos típicos de nossos países. Essa é outra atividade clássica dos programas do CISV, e um dos momentos mais legais. Obviamente que o Brasil não podia deixar de levar brigadeiro, pão de queijo e (neste caso, como era um programa para adultos) a adorada caipirinha!

A partida

Depois de 15 dias tão intensos e de tanto aprendizado, ainda teríamos uma última surpresa. Nossa atividade final foi conhecer o porão da Cascina. E não fazíamos ideia de que ali, debaixo de nossos pés, estava um a material incrível. Uma parte da exposição “Fare gli italiani”, que em 2011 comemorou os 150 anos da unificação italiana foi doada para Cascina Caccia.

Painéis contando a história da máfia na Itália e fora dela, cartas da família de Bruno Caccia e, o mais impressionante, réplica das pastas de centenas de processos de vítimas da máfia. Entre elas os próprios juízes Falcone e Borsellino, símbolos do combate ao crime organizado e da legislação anti-máfia.

Foi um momento de muita reflexão sobre tudo que vivemos, compartilhamos e aprendemos. Impossível não se emocionar. Sentados ali naquele espaço, em silêncio, fiz questão de olhar para cada rosto, de cada amigo que ali conheci e que levarei para toda a vida.

Obrigada Fran, Lu, Giovana, Mar, Guile, Fábio (s), Anita, Carol, Shila, Hanah, Helena, Labis, Renata, Vera, Catherine, Catarina, João, Magu, Iolanda, Sidse, Aymen e Valeria,

E que venham novos IPPs, novas experiências de viagens e de mundo tão enriquecedoras!

 

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Gabi Brunelli
Gabi Brunelli

Gaúcha que nasceu em São Paulo, mãe da Luiza, apaixonada por viagem, mergulho, fotografia e futebol. Descobriu que sofre de crises de abstinência se não tiver pelo menos dois roteiros já planejados. Nem que seja até a cidade ao lado. Publicitária de formação, curiosa por opção.

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